sexta-feira, 8 de maio de 2020

Análise do Discurso [Statement Analysis]: Carta de suicídio deixada pelo ator Flávio Migliaccio. O que está nas entrelinhas?

Recentemente o ator Flávio Migliaccio foi encontrado morto, aos 85 anos, no sítio onde morava em Rio Bonito, no Rio de janeiro. A morte do ator foi confirmada como suicídio, pelo Boletim de Ocorrência.
O ator, antes de suicidar-se deixou uma carta, que foi aberta ao público pelo seu único filho.
Analisaremos o que está escrito nesta carta através da técnica de Statement Analysis (Análise de Declaração), aonde através das palavras faladas e escritas, como no caso, é possível identificar informações ocultas, informações ausentes, dissimulações e outras detecções.


Declaração:

"Me desculpe, mas não deu mais. A velhice neste país é o caos, como tudo aqui. A humanidade não deu certo. Eu tive a impressão que foram 85 anos jogados fora... Num país como este. E com esse tipo de gente que acabei encontrando. Cuidem das crianças de hoje."

Análise:


"Me desculpe, mas não deu mais..."

I - A palavra "me desculpe" logo no começo, indica sentimento de culpa racionalizado, pois vem antes da conjunção "mas". Ser racionalizado significa que não é sentido como deve.

II - Uso da conjunção "mas".
De acordo com estudos de Statement Analysis, o "mas" tem a função de refutar ou minimizar, por comparação, o que lhe precede. Ou seja, o que é escrito (ou falado) após o "mas" é mais importante para o agente do que o que precede.
Apesar do sentimento de culpa que o ator sente, para ele é mais importante dizer que "não deu mais", do que pedir desculpas.

III - Conjugação verbal no Pretérito Perfeito.
Apesar do ator, obviamente ter escrito essa carta enquanto ainda estava vivo, nesse trecho, ele conjuga o verbo no Pretérito Perfeito ("não DEU mais").
Essa conjugação, nesse contexto, indica a antecipação do desejo de não existir mais, de se considerar não vivendo mais neste mundo, de ser passado. Não existe mais qualquer resquício, por minimo que seja, de continuar vivendo.
Esse é um ponto muito interessante, de ser falado. Algumas cartas de suicídio encontram-se com tempos verbais no Presente do Indicativo, o que mostra que apesar de haver o desejo de ceifar a própria vida, há um resquício mínimo de vontade de continuar vivendo, pois a pessoa ainda se vê neste mundo.


"A velhice neste país é o caos, como tudo aqui"

I - Uso do artigo definido "o"
Na Análise de Declaração os artigos, por serem elementos instintivos, são de extrema valiosidade na declaração.
Aqui, o ator optou por usar o artigo definido "o", ao invés de um indefinido (Ele poderia dizer que a velhice neste país é um caos).
O fato dele ter usado esse tipo de artigo, indica que ele vivenciou a velhice como tendo um tratamento negativo pelo país.
Para ele, a velhice não é um caos qualquer, é O caos.


"A humanidade não deu certo"

I - Uso do Pretérito Perfeito
Novamente vemos que aqui o ator segue não se considerando mais viver nesse mundo. Já houve uma conclusão interna do fracasso da humanidade.
Para pessoas que ainda se consideram fazendo parte dessa humanidade, é adotada a conjugação no gerúndio ("A humanidade não ESTÁ DANDO certo"). Aqui é demonstrado, pelo agente, um reconhecimento que o fato de dar certo é um processo que ainda está acontecendo. Não há ainda uma conclusão.


"Eu tive a impressão que foram 85 anos jogados fora..."

I - Uso do pronome pessoal "eu"
De acordo com ensinamentos de Mark McClish os pronomes são considerados, assim como os artigos, elementos de grande valiosidade para o discurso, pois o agente se coloca no contexto descrito. Não há fugas.

II - Tempo verbal conjugado no Pretérito Perfeito.
Até o presente momento, todas as conjugações foram neste tempo verbal, indicando sempre que ele já não se considerava mais vivendo neste mundo, antes mesmo de se matar.

III - Uso da palavra "impressão"
De acordo com Mark McClish, essa palavra é considerada uma assertividade fraca, pois ela não imprime uma certeza.

IV - Uso de reticências ao final do trecho
De acordo com estudos de Statement Analysis, o recurso das reticências indicam que existe mais coisa a ser falada. Representa uma omissão.
A reticências combinada com uma palavra que indica incerteza, demonstra que o ator sabia que durante os 85 anos ele realizou coisas importantes que foram bem positivas para ele.


"E com esse tipo de gente que acabei encontrando"

I - Palavras que representam emoções
Existem expressões que quando são verbalizadas ou escritas, conseguimos identificar a emoção que o agente sente pelas pessoas citadas.
A expressão "tipo de gente" tem em seu significado uma emoção intrínseca de desprezo pela "gente" citada.

II - Uso de linguagem passiva
O uso de verbos auxiliares ("acabei encontrando") é considerado para a Análise de Declaração uma linguagem passiva, pois o agente é quem está sofrendo a ação. Diferente de dizer que "encontrou" (linguagem ativa)
De acordo com os ensinamentos de Statement Analysis, neste contexto, o uso de uma linguagem passiva indica que alguma informação, alguma identidade e/ou uma responsabilidade está sendo omitida.
Por ser uma linguagem passiva, também é possível acrescentar que, por ele ter sofrido a ação, esse encontro foi alheio à sua vontade.
Podemos concluir que o ator não quer citar quem foi, ou quem foram, os responsáveis por ele se sentir em um estado negativo, que culminou em seu suicídio.

III - Alteração na estrutura do tempo verbal
Pela primeira vez, durante a carta, o ator altera o tempo verbal do Pretérito Perfeito para o um verbo auxiliar seguido de gerúndio.
Como dito anteriormente, "Encontrei" não é a mesma coisa que "acabei encontrando", sob o prisma do Statement Analysis.
Essa alteração foge da linha de base verbal do contexto, o que pode confirmar a omissão citada acima.


"Cuidem das crianças de hoje"

I - Período vago com omissões
Esse trecho levanta algumas questões que não foram expressamente respondidas, como: "Cuidar como?", "Cuidar por que?", etc.
É comum em algumas cartas de suicídio, ao final, fazer um pedido para quem vai ler; ou às vezes, algum agradecimento.


SUMÁRIO: A análise da carta suicida escrita pelo ator Flávio Migliaccio demonstra que ele já não se considerava mais fazendo parte deste mundo. Não havia nenhum resquício de possibilidade dele querer viver mais.
Ele cita a velhice e a humanidade como sendo os pontos negativos e principais por ele ter cometido esse ato contra si próprio.
A afirmação de que foram 85 anos jogados fora vem com elemento de dúvida. Isso significa que apesar ele afirmar isso, ele sabe que durante esse tempo ele fez coisas importantes e que ficarão presentes.
Ele afirma, através de uma linguagem passiva, que foi determinado "tipo de gente" contribuiu para esse contexto de suicídio, mas ele omite quem faz parte desse grupo de pessoas e suas responsabilidades.

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